Jogos Universitários: A Face Oculta da Cultura de Ódio

Os jogos universitários, palco de celebração e competição, têm revelado um lado sombrio: a manifestação de uma cultura de ódio. Em vez de promover a união e o espírito esportivo, alguns alunos se valem de critérios questionáveis para reafirmar uma suposta superioridade, gerando ofensas e atitudes que, em muitos casos, configuram crimes.

O Estopim: Apologia ao Estupro e Misoginia

Um episódio recente na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, chocou a todos. Uma faixa com a frase “Entra por**, escorre sangue”, em clara apologia à cultura do estupro, resultou na expulsão de 12 alunos. Esse caso, infelizmente, não é isolado. A misoginia, como definida pela socióloga Bruna Camilo, permeia diversas manifestações de ódio nos jogos universitários.

Gritos de Torcida: O Espelho da Desigualdade

Os gritos de torcida, muitas vezes, revelam a luta de classes presente nas universidades. Expressões como:

  • “Federal, fala baixinho, quem tem 10 mil não envelhece no cursinho!” x “10 mil reais é o preço que se paga por não ter estudado mais!”
  • “Eu sou solidário, pago seu curso e vou pagar o seu salário” x “Explode o seu cartão, na maior mensalidade, é lindo ver seu pai pagando a tua e a minha faculdade.”

Esses versos demonstram uma disputa paralela, onde ofensas preconceituosas e racistas são disfarçadas de “brincadeiras”. Grupos de torcedores, por razões financeiras, étnicas ou intelectuais, julgam-se superiores e reforçam a exclusão: “aqui não é seu lugar”.

Relatos que Ferem a Alma

Thamires Soares, aluna de direito da Uerj, relata o choque de ver estudantes jogando notas falsas de dinheiro para ostentar sua condição financeira. A aluna ainda declara:

“Durante muito tempo, a gente, que é pobre e preto, não acessava a universidade pública. Agora que conseguiu, precisa vivenciar isso? Reforça o sentimento de não pertencimento.”

Outro caso emblemático ocorreu quando alunos de medicina da Unig entoaram: “Sou playboy, não tenho culpa se seu pai é motoboy”.

Esses episódios, como o ocorrido na PUC-SP em 2024, não são exceção. Eles revelam um comportamento violento e elitista que acompanha o esporte desde suas origens.

Raízes Históricas da Discriminação

A violência e o conflito de classes nos jogos universitários têm raízes históricas profundas:

  • Origem do futebol: Na Inglaterra, o futebol surgiu em meio a um conflito de classes entre professores e alunos.
  • Desigualdade social: A crença de que certos espaços são exclusivos da elite alimenta as ofensas.
  • Álcool e privação de sono: A combinação de bebidas alcoólicas e noites mal dormidas intensifica as intrigas.
  • Crimes: As provocações ultrapassam a barreira da ética e se tornam criminosas, como o caso de racismo com a casca de banana.

A Bebida Incendeia, Mas as Câmeras Intimidam

Flavio Venucini, professor da USP, aponta que os conflitos nos jogos universitários são seculares. A diferença é que, com a popularização dos smartphones, os jovens temem ser flagrados em atitudes ofensivas. A psicóloga Rita Calegari complementa que o grupo potencializa comportamentos disruptivos, que dificilmente ocorreriam de forma individual.

O Limite entre a Provocação e o Crime

É fundamental distinguir os tipos de provocação:

  • Discriminação: Ofensas relacionadas a gênero, raça, nacionalidade, deficiência ou idade configuram crime, passíveis de punição pelo Código Penal e pela Lei nº 7.716.
  • Imoralidade: “Piadas” sobre a inteligência alheia podem ser imorais, mas não necessariamente criminosas.

Preconceitos Aflorados: O Não-Pertencimento

Em 2018, a PUC-Rio perdeu o título de campeã após denúncias de racismo. Uma torcedora jogou uma casca de banana em um atleta negro, enquanto outros imitavam macacos e ofendiam alunos da Uerj.

Wallace Corbo explica que chamar alguém de “cotista” evoca a ideia de não pertencimento, negando a igualdade e reforçando a exclusão.

Soberba Intelectual: A Arma dos “Privilegiados”

Além das questões financeiras e raciais, a “inteligência” também é utilizada como pretexto para a superioridade. Músicas depreciativas contra faculdades com mensalidades mais acessíveis demonstram essa soberba intelectual.

Como Superar Esse Cenário?

Para Katia Rubio, o esporte profissional também contribui para a troca de ofensas nos jogos universitários. Ela explica que é fundamental combater a falta de educação com atitudes respeitosas, trabalhando a mediação de conflitos e proporcionando letramento racial.

Os especialistas apontam algumas medidas essenciais:

  • Fim da impunidade: Garantir que os atos tenham consequências.
  • Mediação de conflitos: Promover o diálogo entre os torcedores.
  • Letramento racial: Oferecer educação sobre questões raciais, especialmente em cursos elitistas.
  • Ações afirmativas: Ampliar a diversidade nos ambientes acadêmicos.

Wallace Corbo conclui que a presença de cotistas e negros nas universidades constrange aqueles que se opõem à inclusão. É preciso que todos entendam que a universidade é um espaço de todos, e que xingamentos não podem ser justificados como “liberdade de expressão”.

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