A Luta Contra a Censura em Sorocaba: Uma História Que Não Termina
Embora a Ditadura Militar no Brasil tenha chegado ao fim em 1985 e a censura à liberdade de expressão tenha sido formalmente abolida em 1988 com a promulgação da Constituição Federal, a busca pela verdade sobre os eventos obscuros daquela época persiste.
Em Sorocaba (SP), pesquisadores e vítimas da repressão continuam a trabalhar incansavelmente para trazer à tona fatos que foram deliberadamente ocultados durante o regime militar.
Censura: Uma Marca da Ditadura
Durante os 41 anos da ditadura, a censura se tornou uma ferramenta para controlar a disseminação de informações e expressões artísticas:
- Artistas e escritores: Suas obras eram frequentemente alvo de censores, que buscavam reprimir qualquer conteúdo considerado subversivo.
- Imprensa: A divulgação de notícias sobre problemas sociais e econômicos era rigorosamente controlada pelo governo, criando uma falsa impressão de normalidade e bem-estar.
Carlos Baptistella, artista gráfico, diretor de arte e jornalista, destaca que a censura à imprensa foi particularmente prejudicial, pois impediu que a população tomasse conhecimento de problemas críticos, como a grave epidemia de meningite de 1974.
A Noite do Beijo: Um Ato de Resistência
Em 1981, Sorocaba testemunhou um protesto marcante contra a repressão, conhecido como a “Noite do Beijo”. Organizado por Carlos Baptistella e reunindo mais de cinco mil pessoas, o evento desafiou a proibição judicial de beijos em público, imposta sob alegações de “questões morais”.
A manifestação ganhou notoriedade e, em 2021, foi tema de um documentário que relembra a importância desse ato de resistência.
A essência da Noite do Beijo
Segundo Baptistella, a “Noite do Beijo” representou um repúdio ao autoritarismo e uma defesa do direito à autorregulação. Foi um ato de resistência à repressão e uma afirmação da liberdade individual.
O impacto da “Noite do Beijo” transcendeu as ruas de Sorocaba, inspirando o livro “Noite do Beijo!”, lançado em 2013, no qual Baptistella mistura realidade e ficção para explorar o tema da liberdade de expressão.
A Luta Continua
Para Baptistella, se a “Noite do Beijo” fosse realizada hoje, sua principal bandeira seria a defesa das populações vulneráveis contra a violência doméstica e sexual, direcionando a atenção para o respeito aos direitos de crianças e mulheres, especialmente nas periferias.
O Dia do Fim da Censura
O dia 3 de agosto de 1988 marcou o fim da censura federal no Brasil, com a entrada em vigor da Constituição. Essa data é lembrada como o “Dia do Fim da Censura no Brasil”.
No entanto, a luta pela preservação da memória e pela revelação dos fatos obscuros da ditadura continua sendo essencial, como afirma a jornalista Fernanda Ikedo. Para ela, é preciso combater as fake news atuais e trazer à tona as verdades de um passado que foi deliberadamente ocultado.
Fernanda é autora de um livro-reportagem e um documentário sobre o período da ditadura militar sob a perspectiva regional de Sorocaba. Em “Ditadura e Repressão em Sorocaba: Histórias de quem resistiu e sobreviveu”, publicado em 2003, ela relata a resistência estudantil durante o regime militar.
Sua obra também inspirou o documentário “Porque Lutamos! (2009), que narra a história do estudante sorocabano Alexandre Vannucchi Leme, preso, torturado e morto no DOI-Codi em 1973.
O Teatro Sob Censura
Roberto Gill Camargo, dramaturgo, produtor teatral, professor e pesquisador, relembra os tempos em que suas peças eram censuradas. Aspectos relacionados à religião e à liberdade eram estritamente proibidos nos palcos. Segundo ele, a palavra “liberdade” era simplesmente vetada.
As peças teatrais enfrentavam um rigoroso processo de censura. Cópias dos textos eram enviadas à Polícia Federal em São Paulo e, posteriormente, a Brasília, onde aguardavam a aprovação e a emissão do Certificado de Censura.
Além dos textos, os censores também avaliavam o aspecto visual das peças, comparecendo aos ensaios gerais para aprovar ou sugerir cortes de cena.
Duas peças de Roberto Gill Camargo, “Bacco e a Orgia dos Tempos” (1969) e “Entreato” (1976), sofreram cortes da censura. Ele preserva até hoje os textos originais com as anotações dos censores, marcadas em vermelho.
Apesar das dificuldades, Camargo conseguiu estrear suas peças após o AI-5 (Ato Institucional nº 5) e também prestou depoimento à Comissão da Verdade de Sorocaba em 2014.
Ele relata que sempre seguiu as determinações da censura em suas apresentações e festivais, assim como outros diretores de Sorocaba. Camargo destaca que a censura era implacável, atingindo até mesmo textos premiados.
Para superar a censura, os artistas da época se reinventaram, explorando a criatividade e a beleza para transmitir suas mensagens de forma subliminar.
Comissão da Verdade: Revelando a Verdade
Em 2014, a Câmara dos Vereadores de Sorocaba instalou a Comissão da Verdade, uma iniciativa importante para preservar a memória do período da ditadura.
A comissão coletou depoimentos de pessoas que foram perseguidas pelo regime militar, enviando os registros para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
Daniel Lopes, professor de filosofia e um dos coordenadores da Comissão da Verdade, destaca que o trabalho da comissão contribuiu para revelar as ações repressivas da ditadura em Sorocaba, que até então eram desconhecidas pela maioria da população.
Uma das revelações mais impactantes foi a descoberta de que o mais jovem desaparecido político da ditadura era natural de Sorocaba. Marco Antonio Dias Baptista tinha apenas 15 anos quando desapareceu em 1970, enquanto integrava a luta armada e era perseguido por militares em Goiás.
O Mecanismo da Censura
Segundo o professor Mateus Gamba Torres, da Universidade de Brasília (UnB), a censura durante a ditadura controlava o conteúdo de músicas, shows, peças de teatro, novelas, livros, filmes e jornais.
Os problemas sociais e econômicos eram deliberadamente ocultados, criando uma falsa imagem de um país sem dificuldades.
A luta pela verdade e pela memória continua sendo fundamental para garantir que os horrores da ditadura não sejam esquecidos e que a liberdade de expressão seja sempre valorizada.